20 de out. de 2010

Luna Brava




Fragmento 1- A Fazenda
O inverno seco faz a lua-cheia ainda mais brilhante...
A claridade da lua sobre a fazenda revela os animais no meio do pasto, ruminando a ceva da tarde e se agrupando para concentrar calor entre seus corpos. Algumas poucas nuvens deslizam pelo céu, apenas para emoldurar a imensa esfera prateada.
O som de insetos e outros animais noturnos fazem a trilha sonora de um cenário sem movimento, a não ser pelo mastigar incessante dos bois e vacas, e suas respirações leves e compassadas. A grama alta cobre o solo por toda a extensão daquele terreno até o cercado de madeira, que divide o pasto de uma estreita estrada de terra batida, e que por sua vez, delimita a fazenda e uma pequena mata ciliar.
Subitamente a grama alta se mexe, como ondas em direção dos animais. Uma vaca de raça holandesa é derrubada violentamente por dois vultos velozes que saem da vegetação. O touro de maior porte levanta a cabeça e coloca as orelhas em riste como um sinal de alerta, ele tenta um mugido, mas é golpeado fortemente por outro vulto, e despenca incapaz de reação.
A uns cem metros dali, fica a sede da fazenda, uma casa de arquitetura simples, mas de alicerces altos e imponentes, com uma varanda central que dá acesso ao terreno em frente, onde um poste rústico ilumina toda a frente da propriedade e um trator estacionado na entrada de um depósito com paredes de tábuas de madeira. Embaixo do trator, um pastor-alemão desperta aflito com sua atenção voltada na direção do pasto. Ele se levanta depressa, choramingando de ansiedade, e depois do som de outro golpe seco vindo do pasto, começa a latir intensamente.
Não demora até que a luz da varanda se acenda, e de dentro da casa vem uma voz de mulher: - Jorge... O quê foi?
A porta da casa se abre, saindo dela um homem com cerca de quarenta anos, forte, de cabelos castanhos lisos e pele queimada, vestindo uma calça jeans surrada, sem camisa e descalço. Ele serra os olhos para tentar ver o quê acontece na escuridão da paisagem, mas sem resultado. Ao ver o homem na entrada da varanda, o pastor-alemão se enche de coragem e parte correndo na direção do pasto, saltando sem dificuldades a cerca de madeira e desaparecendo na escuridão.
-Max!! Volta aqui, Max!!! -grita o homem inutilmente.
-Jorge!? - chama a mulher de dentro da casa...
-Alguma coisa no pasto. - responde o homem se voltando para dentro. -Maldita onça! - exclama para si mesmo.
Ele entra na casa, a sala é típica das propriedades rurais, com móveis de madeira escura envernizada, passados de geração por geração, organizados de maneira prática no ambiente, sem grande sofisticação, mas bastante aconchegante. A mulher de cabelos claros cacheados usa camisola e esfrega os braços para suportar o frio, aparenta trinta e poucos anos, suas feições revelam que teve de acordar subitamente.
-Hmm... É a terceira vez neste semestre – constata a mulher se sentando no sofá, enquanto o homem vai para outro cômodo – Mas das outras vezes, ela aparecia pela área dos galinheiros... Não pelo pasto.
O homem retorna para a sala carregando uma cartucheira – Deve ser por causa do cheiro de ordenha desta tarde - diz ele.
A mulher observa o marido colocar as cápsulas alaranjadas cheias de pequenas esferas de chumbo dentro da arma- O Delegado da Polícia Florestal pediu para você ligar, caso ela aparecesse novamente. – ela diz com certa preocupação.
O homem apanha uma lanterna na gaveta de um móvel antigo, cheio de porta-retratos – Eles só vão chegar aqui pela manhã. - Ele responde – E eu não quero perder outro garrote.

Ele se senta ao lado da mulher para calçar suas botinas, enquanto ela afaga suas costas. Em seguida se levanta apanhando a cartucheira, saindo da casa, desce os degraus da varanda com passos determinados. A mulher vai até a porta e vê seu marido se afastar, o pastor-alemão late incessantemente ao fundo. Ainda iluminado pela luz da casa, o homem se vira para a esposa preocupada - Só vou assustá-la para que ela não volte... E pela maneira como o Max está latindo, já deve ter encurralado a tinhosa em alguma árvor...
Antes de terminar a frase, o fazendeiro é derrubado por uma criatura bestial, que salta sobre ele, cravando os dentes próximo ao seu pescoço.
A mulher na porta fica paralisada diante daquela cena terrível. Seu coração dispara e seus músculos congelam instantaneamente.
A criatura levanta seu dorso peludo lentamente sobre o corpo do homem. Sua boca espuma uma mistura viscosa de sangue e saliva enquanto seus olhos amarelos de brilho sobrenatural encontram a mulher petrificada na porta da casa.
Ouve-se uma voz de criança – Mamãe...?
A suave palavra vinda da criança atrás dela tem o efeito de uma sacudida sobre a mulher, que instintivamente recupera sua sanidade e bate a porta com força, e rapidamente passa o trinco e a chave, enquanto soluça em desespero.
Na mesma velocidade que trancou a porta, ela apanha o filho, apertando seus dedos no braço do menino e puxando com força em direção do quarto do casal.
O garoto de dez anos emudece diante da aflição de sua mãe, para ele só resta acompanhá-la quarto adentro e observar em desespero enquanto sua mãe tranca a grande porta de madeira. A mulher se abraça ao filho, jogando seus corpos no canto do quarto próximo da cabeceira da cama. Ela aperta o menino sobre seu peito e respira intensamente, enquanto lágrimas correm pelo rosto dos dois.
Lá fora, a criatura que atacou o homem se levanta, deixando o corpo inerte de sua presa no chão manchado de sangue. Seus pelos acinzentados e grossos reluzem na frente iluminada da varanda. Ele observa a casa, e ao fundo se ouve os latidos intensos do pastor-alemão, que são interrompidos por um grunhido de dor extrema, e os latidos param.
Alguns segundos depois, outras criaturas se juntam a primeira. Está escuro demais para se perceber a diferença entre eles, mas é possível associar suas silhuetas a de um humanóide, com pelos espessos, orelhas pontudas e bocas raivosas, com dentes afiados e terrivelmente ameaçadores. Eles caminham de forma arqueada, mas com muita segurança, suas respirações pesadas aparentam um êxtase selvagem. Apesar de suas insensatas e bestiais figuras, eles se alinham de forma organizada atrás daquele que parece ser o líder do grupo, o mesmo que tirou a vida do fazendeiro de forma tão rápida, quanto soprar a chama de uma vela. Ele dá um salto impressionante da frente da casa até o telhado.
Lá dentro, a mulher e o filho percebem o ruído no teto e olham para cima em desespero. Com a respiração descompassada e olhos estatelados, ela abraça mais fortemente ainda o pobre filho, totalmente tomado pelo pavor. Os dois escutam as telhas serem arrancadas por sobre o forro de madeira fina no alto do quarto e também os grunhidos das outras criaturas por todos os lados, como se estivessem anunciando os poucos segundos que restam para estarem todos ali presentes naquele cômodo, no momento mais aterrador que alguém possa imaginar.
Neste momento a mulher olha para a parede da cabeceira da cama, onde está um quadro retratando a imagem da Virgem Maria abraçada ao Menino Jesus. As lágrimas lavam seu rosto, escorrendo até sua boca, que consegue tremulamente balbuciar algumas palavras:
-M-mãe de Deuss... Valei-me Mãe de Deus!!! Mãe de Deus!!!!
No céu, a lua parece curiosa com o desfecho desta cena, aumentando seu brilho por entre as parcas nuvens que a rodeiam.
Os grunhidos das criaturas, cada vez mais selvagens e alucinados se mesclam as súplicas da mulher- Valei-me Mãe de Deus!! Mãe de Deus!! MÂE DE DEUS!!!
Do lado de fora, ouve-se a voz suplicante da mãe em desespero ser abafada por um rosnado violento. Em seguida, um longo e rouco uivo atravessa a noite.
...

Luna Brava




Fragmento 2- Os Ciganos
Amanhece na fazenda, uma fina neblina começa a se dispersar por entre as árvores da mata ciliar. O silencio impera na paisagem, e suas formas são reveladas à medida que a claridade surge. A grama do pasto está tingida de vermelho opaco e sobre ela jazem as carcaças dos animais mortos. Bois e vacas com suas costelas e entranhas a mostra, atraem as moscas nos primeiros raios de sol. Alguns metros dali, um embolado de pelo marrom, carne e ossos apontam para o que um dia foi o pastor-alemão que guardava a fazenda.
Na estrada lateral que acompanha a cerca do pasto, vem surgindo um furgão, do tipo Chevrolett Veraneio dos anos setenta ou oitenta. Ela se aproxima com sua lataria prateada reluzindo no sol da manhã. Nas laterais, listas vermelhas e roxas, desenhos de sol, lua e estrelas ornamentam com gosto duvidoso as portas e capô, pneus largos sobre rodas de metal cromado circulam lentamente pela areia úmida da estrada, no seu retrovisor interno é possível perceber apetrechos pendurados, como rosários, crucifixos, pentagramas, dentes de animais e colares com penas de águia.
A Veraneio pára em frente a entrada da sede da fazenda, e dela descem três homens de pele bastante bronzeada, rostos firmes e marcantes e olhos verdes. Eles caminham por uma estreita rua de pedregulhos que leva até a entrada principal da casa. À medida que caminham, observam ao redor, captando detalhes, vestígios e aromas deixados no ar, que revelam o quanto trágica havia sido aquela noite.
No centro, vai Ramiro, alto e forte, tem cerca de quarenta anos. Cabelos negros lisos, presos por um rabo-de-cavalo na nuca, bigode bem aparado que desce pelos cantos da boca até o queixo. Carrega na mão direita uma cartucheira de cano duplo com a coronha serrada. Tem passos firmes e confiantes. Usa calça preta com cinto de couro ornamentado, fivela dourada de detalhes em prata. Botas de couro pretas que chegam até pouco abaixo dos joelhos. Uma camisa branca aberta no peito, o suficiente para revelar um conjunto de correntes de ouro que descem de seu pescoço. Em seus dedos grossos, anéis e alianças de ouro com pedras de aparente valor, e nos punhos, imponentes pulseiras de ouro.
Do seu lado esquerdo, vai Manolo, também forte, mas não tão alto, com cerca de trinta anos. Cabelos castanhos escuros, levemente ondulados e penteados vigorosamente para traz. Carrega cruzando o peito uma espingarda calibre 12. Camisa xadrez de tons vermelhos e marrons, também aberta no peito exibindo seus colares, e punhos dobrados revelando suas pulseiras e anéis. Calça de brim, num tom cinza, sujo e desgastado, com um cinto marrom de fivela oval de metal dourado. E nos pés, botas de couro marrom com ornamentos em relevo e fivelas douradas.
E no lado esquerdo está Cezar, porte médio, aparentando pelas marcas do rosto ter mais de cinqüenta anos, porém com uma vigorosa figura física, apesar de um tanto sinistra e sombria. Sua mão esquerda apoiada no coldre de um revólver enfiado na cintura. Camisa e calça de tecido negro sobre botas de couro surrado. Não tem colares e pulseiras, apenas um anel com uma grande pedra vermelha, braceletes de couro com fivelas prateadas, um lenço ocre amarrado frouxamente no pescoço e um chapéu preto, tipo gângster, sobre os cabelos acinzentados.
Os três homens se aproximam da casa, Ramiro engatilha sua arma. Cezar saca o revólver da cintura e com a mão esquerda, puxa de uma bainha pendurada nas costas um facão com cerca de meio metro de lâmina. De frente a entrada da casa, eles param e olham ao redor, averiguando detalhes do que foi deixado ali, inclusive os restos dilacerados do corpo do fazendeiro.
-Quantos deles? Pergunta Ramiro para Cezar, sem olhar para seu companheiro, que gira a cabeça ao redor e constata com segurança:
-Pelo menos cinco... Eles entraram na casa.
Ramiro sobe os degraus da varanda da casa, com sua arma postada em frente do seu tórax e apontada para cima. Com cautela e sem esforço aparente, ele arromba a porta com um único pontapé, ecoando um barulho de madeira rachando e o metal do trinco quicando no assoalho.
A sala está escura, ele aponta a arma para dentro e avança com passos lentos, seguido por Cezar e Manolo. Eles sentem o odor de sangue ainda úmido, mesclado ao almíscar de transpiração animal. Dentro da casa eles se separam, percorrendo os cômodos silenciosos. Manolo encontra o que sobrou do corpo da mulher no corredor que divide os quartos. Ele da um leve resmungo de nojo e Cezar vem a seu encontro.
-Eles arrastaram a mulher pela casa... Devem ter lutado pelo corpo dela... Constata Cezar, de maneira fria e analítica, fazendo Manolo sentir mais nojo ainda.
Ramiro adentra o quarto de casal. A luz do sol entra pelo teto destelhado e a fina madeira do forro rasgado. Ele vê o quadro da Virgem Maria com o menino Jesus, com um borrão de sangue cortando a imagem na diagonal e continuando pela parede. Ramiro circula o quarto de costas para a parede, e ao chegar do outro lado, percebe um braço de criança, inerte no chão, que sai debaixo da cama. Ele se aproxima, abaixando o corpo lentamente para averiguar melhor o que encontrara. A mão se mexe num tipo de espasmo. Ramiro se assusta, recuando instintivamente o corpo, mas rapidamente, segurando a arma com a mão esquerda, levanta apenas com a mão direita a lateral de madeira nobre da enorme cama de casal.
O menino está deitado sobre uma possa de sangue. Os olhos estatelados e respiração lenta demonstram o seu estado de choque.
Ramiro ajoelha-se perto do garoto e se assusta novamente quando Cezar chega por trás dele.
-Está vivo? -pergunta o velho cigano com a mesma frieza.
-Por enquanto. -responde Ramiro - Ele foi mordido...
Os dois olham para a marca profunda de mordida no ombro do menino. Ramiro franje as sobrancelhas grossas, cheio de dúvidas.
-Não sei por que não o mataram. -diz Ramiro.
-A mulher deve ter lutado até o fim para defendê-lo. -diz Cezar. -E eles devem ter desistido do gadjo... É o que aparenta.
-Sim. -aceita Ramiro, ainda que confuso. -Mas não é típico do comportamento deles.
-Ele foi mordido? –pergunta Manolo entrando no quarto. Ramiro apenas suspira e o próprio Manolo se dá a resposta. –Então ele foi infectado.
Cezar se levanta e vai para a lateral do quarto, esperando uma decisão de Ramiro. Alguns segundos de silêncio se passam. O líder dos ciganos levanta o olhar do menino para a mancha de sangue estirada na parede que mais parece uma pintura abstrata cortando o quadro da Mãe de Jesus em diagonal.
-Cezar, você consegue estancar o sangue? -pergunta Ramiro olhando de volta para o corpo do menino.
-O quê? –indaga Manolo surpreso. –Ramiro, ficou louco? Ele está infectado! Você sabe o que deve ser feito!
-Acho que consigo. –responde Cezar, acendendo um cigarro cor de canela. –Mas teremos que levá-lo até o acampamento.
-Santa Sarah me defenda, homens!? –indigna-se Manolo. -Esse gadjo foi infectado e vocês querem levá-lo ao acampamento? Em plena Luna-Brava?
-Ramiro... Farei o quê me pede, se me disser o quê está pensando. –diz Cezar.
-A Luna-Brava vai salvá-lo do ferimento, se ele agüentar até a noite. –responde Ramiro.
-Sim, meu irmão. –diz Manolo. –Mas em pouco tempo ele vai se tornar um deles.
-Eu sei, Manolo. Mas acho que podemos controlá-lo. -responde Ramiro. –É apenas um chaví.
-Que acabou de se tornar uma besta infernal. –retruca Manolo. –Ramiro, pense bem... Poderá dominá-lo agora que é só um chaví como disse, mas logo seus instintos vão levá-lo até sua matilha.
Cezar dá um pequeno sorriso e ajeita a aba do chapéu sobre os olhos.
-É com isso que estou contando. –responde Ramiro.
Fora da casa, Ramiro desce as escadas com o garoto em seus braços, enrolado em um cobertor, sem olhar para trás, ele segue firmemente em direção da Veraneio. Atrás dele, Manolo com uma tocha improvisada coloca fogo nas laterais da varanda e também se afasta. Cezar é o último a sair, depois de colocar fogo no interior da casa, ao se afastar um pouco, ele joga a tocha sobre o telhado. O grupo se distancia, à medida que a casa arde numa imensa fogueira, o som de madeira estalando nas chamas vai ficando para trás, e a fumaça escura esconde o sol da manhã.